sábado, 29 de setembro de 2012

Aos 86 anos, o escritor Rubem Fonseca figura no topo da lista dos maiores nomes da literatura brasileira contemporânea. Ao lado de outro também grande, o curitibano Dalton Trevisan, Zé Rubem, como é conhecido pelo círculo restrito de amigos, construiu uma fama de recluso: nega-se a conceder entrevistas, não aprecia ser fotografado e, quando identificado em suas caminhadas “criativas” pelo bairro do Leblon, no Rio de Janeiro, costuma dizer que “não, ele não é Rubem Fonseca, é Ruy Castro”. Sobre a sua biografia e vida pessoal, pouco se sabe. Agora, uma pequena novela inédita, “José” (Nova Fronteira), vem à luz e tudo indica que o escritor que odeia falar de si próprio anda com propensões a memorialista. Como no título do livro, Rubem Fonseca se chama mesmo José. Como o personagem, descrito em terceira pessoa, ele é descendente de imigrantes portugueses, nasceu em Juiz de Fora e foi para o Rio aos 8 anos de idade. Também como o protagonista de sua história, estudou advocacia, foi comissário de polícia, tornou-se um escritor – e famoso: o do livro lembra encontros com a autora americana Susan Sontag e viagens a prêmios literários internacionais. Todas essas coincidências levam a crer que o autor esteja falando de seus anos de formação. Mas ainda assim, Rubem Fonseca mantém o mistério em torno da criatura que parece ser ele próprio e cujas andanças por um Rio de Janeiro hoje inexistente ganha às vezes ares de ficção. Ou seja, sempre que o leitor acredita que tudo o que está sendo dito é verdade, na sequência um engenhoso procedimento literário lança dúvida e coloca tudo a perder. Assim é Rubem Fonseca, que em sua nova obra, editada simultaneamente à coletânea de contos “Axilas e Outras Histórias Indecorosas”, se mantém fiel ao pensamento do poeta russo americano Joseph Brodsky, para quem a verdadeira biografia de um escritor está contida em seus livros. Essa frase aparece na seção de seu site dedicada à sua trajetória, que presenteia o leitor com apenas cinco linhas, secas e diretas como o estilo do autor. Foi nesse site, aliás, que Fonseca começou a esboçar “José”. Viciado em internet, que usa inclusive para conversar com amigos escritores como João Ubaldo Ribeiro, ele publicou partes da obra entre 2004 e 2005. Agora, ela ganha forma acabada. Num jogo de esconde-esconde, o leitor se depara com passagens que caberiam bem a um menino nascido numa família dada a modernidades – a mãe teria sido a primeira mulher a fumar e a dirigir um carro em Minas Gerais e o seu pai teria batizado o seu negócio, uma loja que vendia de “alfinetes a automóveis”, de Paris n’América. O garoto, que teria aprendido a ler sozinho, vivia, aliás, em Paris – os livros em que mergulhava eram todos de procedência francesa, nada para crianças de sua idade. E isso é verdade. Tatiane Goulart Mangia nº 35

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Rubem Fonseca inaugurou uma nova corrente na literatura brasileira contemporânea que ficou conhecida, em 1975 através de Alfredo Bosi, como brutalista. Em seus contos e romances utiliza-se de uma maneira de narrar na qual destacam-se personagens que são ao mesmo tempo narradores. Várias das suas histórias (em especial, os romances) são apresentadas sob a estrutura de uma narrativa policial com fortes elementos de oralidade. O fato de ter atuado como advogado, aprendido medicina legal, bem como ter sido comissário de polícia, nos anos 50 no subúrbio do Rio de Janeiro teria contribuído para o escritor compor histórias do submundo dentro dessa linguagem direta. Muito provavelmente devido a isso, vários dos personagens principais em sua obra são (ou foram) delegados, inspetores, detetives particulares, advogados criminalistas, ou, ainda, escritores. Além do tom nitidamente policialesco, em que há geralmente um crime ou um mistério a ser desvendado, sua obra pode ser vista como uma paródia do gênero policial tradicional, visto que os crimes atuam apenas como um disfarce de suas críticas a uma sociedade opressora do indivíduo. No gênero policial tradicional o mistério funciona como uma casca que encerra um caroço; ali a “morte não é nada. O assassinato não é nada. O que transtorna é a selvageria do crime, porque ela parece inexplicável” (Boileau e Narcejac, 1991: 11). A Rubem Fonseca – mais do que simplesmente deslindar o ato criminoso – interessa registrar o cotidiano terrível das grandes cidades e, simultaneamente, por a nu os dramas humanos desencadeados pelas ações transgressoras da ordem. Persistem, apesar disso, algumas semelhanças entre literaturas como a de Sir Arthur Conan Doyle (criador de Sherlock Holmes), que se insere nos parâmetros tradicionais do gênero, e a de Rubem Fonseca. Em ambos os autores, o enigma inicial fica por conta de um crime brutal (geralmente um homicídio) que gera toda uma atmosfera de mistério e tensão no romance e fará com que o leitor não desgrude os olhos de suas páginas antes do desenlace. Ainda podemos notar semelhança na maneira como se iniciam as investigações, isto é, o primeiro passo seja do investigador genial (Sherlock Holmes) ou do investigador comum (Mandrake, Guedes, Mattos, etc.), que será a visita ao local do crime em busca dos primeiros indícios que nortearão o processo investigativo. Além disso, encontramos outros exemplos quase irrelevantes do ponto de vista da comparação que estamos estabelecendo, mas que sugerem alguma semelhança, como a relação entre Mandrake e Wexler, em A grande arte (1983), e Sherlock e Watson como companheiros para solucionar crimes. As diferenças, porém, são mais fascinantes. Enquanto no gênero policial tradicional temos, segundo Pierre Boileau e Tomas Narcejac (1991), um investigador portador da graça metafísica e guiado pelo pensamento positivista, em Rubem Fonseca há um investigador simples, que, ao mesmo tempo, não é como a “máquina de pensar” de Poe ou Doyle e nem como “intuição demolidora” de Hammet ou Chandler (Boileau e Narcejac, 1991), escritores da literatura conhecida como noir. Num mundo sujo e infame, onde a moral e a ética foram dissolvidas, onde o vilão e o mocinho desaparecem, estas personagens erguem um protesto quase solitário (senão romântico) contra esta realidade que, apesar de tudo – ao contrário do romance policial tradicional – continuará suja e infame, seja o criminoso eliminado ou não. Os tempos são outros e os leitores que se aventuram por alguns dos romances policiais contemporâneos em busca de detetives com cara de herói, correm sério risco de abandonar o livro antes do final. Rubem Fonseca é pródigo em deixar as coisas para o leitor completar. Ao escrever, o autor deve supor um interlocutor inteligente, culto, atento. Com uma inesgotável amplitude de experiências e observações, tornou-se capaz de escrever com a mesma verossimilhança sobre halterofilistas e executivos, marginais e financistas, delegados de polícia e assassinos profissionais, garotas de programa e pobres diabos que vagam sem destino pelas ruas do Rio de Janeiro. Tem, pois, como matéria-prima os dois extremos da nação: os que vivem à margem do sistema e os que constituem o núcleo privilegiado do mesmo. O que mais choca nos romances e contos de Rubem Fonseca é o amoralismo dos bandidos. Em nenhum momento eles são atormentados por qualquer remorso ou culpa. São perversos e frios, venham dos estratos superiores ou das camadas populares. As cidades parecem vazias de inquietação ética, a não ser por alguns indivíduos que, em meio ao horror, agem movidos por um sentimento qualquer de justiça. A relação entre “mocinho” e “bandido” está presente em suas obras, contudo não nos é possível identificar exatamente quem é um e quem é o outro, pois há uma grande transitividade entre ambos fazendo com que, por exemplo, Wexler suponha que o criminoso em A grande arte seja, até mesmo o próprio Mandrake: “Pode ter sido qualquer pessoa. Pode ter sido você, Mandrake.” (Fonseca, 1983: 296). Não obstante as mais variadas combinações de “mocinho” & “bandido” nas personagens de Rubem Fonseca, vemos n’O caso Morel (1973) o ex-delegado e escritor Vilela & Morel; o criminalista Mandrake & Lima Prado/ Ajax ou Carmilo Fuentes, em A grande arte (1983); o detetive Guedes & Eugênio Delamare, em Bufo & Spallanzani (1985); o comissário Mattos & “O Anjo Negro” ou Fortunato, em Agosto (1990); e, para completarmos as obras aqui analisadas, Mandrake & Gustavo Flávio, em E do meio do mundo prostituto só amores guardei ao meu charuto (1997). Estes investigadores, inabaláveis na sua força motriz, trazem com certeza o espírito da literatura noir, desenvolvida e aperfeiçoada pelos escritores Hammet e Chandler, apesar de nem sempre se utilizarem dos mesmos meios para a solução dos crimes. Um dos temas dominantes na obra de Rubem Fonseca é a violência que percorre as ruas brasileiras, numa espécie de guerra civil não declarada. Certas passagens de contos ou narrativas longas, como é o caso do romance A grande arte (1983) apresentam uma brutalidade tão meticulosamente narrada que se tornam leitura quase insuportável para os espíritos delicados. Esse romance tem um enredo complexo: o enigma inicial se dá através de um assassino frio que desenha, com uma faca, uma letra “P” no rosto de cada vítima. Mas esse não é o único crime que o leitor deverá descobrir em parceria com Mandrake e Wexler. Muitos outros assassinatos, sem nenhum “P” desenhado no rosto das vítimas, começam a acontecer. No entanto, nessa obra, a chave central dos enigmas é o esclarecimento do que está por detrás do conglomerado Aquiles, misto de banco, financeira, entreposto de contrabando, agência de corrupção, etc. Algo intrigante em suas obras é condição existencial de suas personagens, sempre dominadas por uma atmosfera de violência latente. Mas, de onde virá a inspiração para a composição das misérias humanas das personagens de romances e contos de Rubem Fonseca, já que a condição humana e a violência neles formam um retrato que, a princípio, só foi proposto para a sociedade brasileira pelo próprio autor? Sua obra contém o retrato de uma violência diferenciada das obras literárias escritas, até então, no Brasil. O autor revela os primórdios de uma violência que se pulveriza em nossa sociedade nos dias de hoje, devido ao aumento das contradições sociais, sobretudo nos grandes centros urbanos do Brasil, a partir da década de 70. Isso não nos pode induzir a ver o autor como um mero retratista da violência urbana que assola o país. Sua obra apresenta maiores sutilezas, temas mais complexos e ricos, como a solidão dos indivíduos nas grandes metrópoles. A maioria de seus protagonistas vive opressa, aturdida pela sensação de isolamento e de vácuo na alma – reside nesse ponto uma outra forma de violência, a violência do indivíduo contra si, contra os outros por sua condição e de outros contra esse indivíduo solitário. A abundância de possibilidades eróticas oferecidas pelas cidades dá a suas personagens a obsessão sexual como única alternativa ao vazio da existência, como se na satisfação física do desejo residisse a última certeza de que ainda se está vivo. Essa sensação de isolamento está muito presente em todas as suas obras como, por exemplo, os romances Agosto (1990) e E do meio do mundo prostituto só amores guardei ao meu charuto (1997). Agosto (1990), obra que, apesar de fictícia, tem sua origem na história do Brasil, apresenta vários crimes que acontecem ao mesmo tempo e cujo clímax fica por conta do suicídio de Getúlio Vargas, que interfere muito na vida do comissário Mattos. Mattos é uma dessas personagens que tem no individualismo a marca de sua condição existencial. Podemos sugerir aqui a presença do próprio autor – executivo da empresa Light durante a década de 60, homem de ação e ativista político –, que participou ativamente do movimento que culminou no golpe de 64, mostrando, tal qual a personagem Mattos, sua crença em certos valores capitalistas como o individualismo que se realiza através da liberdade. E do meio do mundo prostituto só amores guardei ao meu charuto (1997) é, entre os estudados, seu romance mais atual. Nessa obra, Rubem Fonseca apresenta o escritor Gustavo Flávio que já fora sua personagem em Bufo & Spallanzani (1985), e também o criminalista Mandrake d’A grande arte (1983). Gustavo Flávio é, dessa vez, relacionado com outro crime e, talvez por seu “curriculum” (em Bufo & Spallanzani esteve relacionado com a morte de Delfina Delamare), seja o principal suspeito até mesmo para sua nova companheira. Mandrake é quem irá trabalhar no caso e tentar desvendar o crime. Assim como Mattos (Agosto, 1990), a condição existencial que marca a vida de Gustavo Flávio é o individualismo. Ele se sente isolado, porém quer sentir-se isolado, e por não gostar que ninguém mexa em suas coisas, faz com que acreditem estar escondendo algo. Uma outra forma de violência que está presente nas obras de Rubem Fonseca, é a violência do autor contra o leitor. Através da análise das relações entre violência e linguagem, podemos sentir a hostilidade no contato com o leitor. Esta hostilidade se traduz pela violência discursiva, tanto através de expedientes formais (estilo seco e entrecortado, frases curtas), como através dos recursos de conteúdo, nas situações-limite em que envolve as personagens. Supondo que a linguagem em geral tem escondido o que justamente importa revelar, Rubem Fonseca propõe o inverso: da “matéria bruta” concernente à realidade para a sua representação na narrativa, uma série de desmistificações se faz necessárias, e na base delas está, sobretudo, a desmistificação da linguagem. A linguagem violenta tem uma função definida frente ao seu leitor: a de presentificar a violência de modo a que ele não tenha mais condições de questioná-la. Entretanto, somos acostumados a abrandar, através de mecanismos vários (como o silêncio, por exemplo), o efeito do que tem que ser dito pelo modo de o dizer, ficamos surpresos diante de uma linguagem tão avessa a atenuações. Nome : Graciele Lins n º 15

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Pensamentos de Rubem Fonseca:

 
" Pois o belo muda, a inteligência muda, a medida muda. Mas o desejo é inalterável. "
 
" Quanto a mim , o que me mantém vivo é o risco iminente da paixão e seus coadjuvantes, amor, ódio, gozo e misericórdia."
 
" Adote um animal selvagem e mate um homem. "
 
" Leio os jornais para saber o que eles estão comendo, bebendo e fazendo. Quero viver muito para ter tempo de matar todos eles. "
 
" Um ladrão é considerado um pouco mais perigoso do que um artista. " - O caso Morel
 
" Numa separação, aquele que não ama é o que diz as coisas carinhosas. " 
 
" Ao se misturarem, as salivas adquirem um paladar inefável, comparável apenas ao néctar mitológico. "
 
" Tenho ginásio, sei ler, escrever e fazer raiz quadrada. Chuto macumba que quiser. "
 
" O pecado é mais saudável e alegre do que a virtude. Aqueles que trocam o vício pela beatice tornam-se velhos feios e desagradáveis. " - O Doente de Moliere
 
" Tinha muitas ideias na cabeça, e isso me atrapalhava. Os melhores conferencistas são aqueles de uma única ideia. Os melhores professores, os que sabem pouco." - O Caso Morel
 
" Deixo as mulheres bonitas para os homens sem criatividade. "
 
" A coerência é uma característica vegetal que eu felizmente não possuo. " - Mandrake - Grande Arte
 
" As coisas naturais têm que ser conhecidas antes de serem amadas. As coisas sobrenaturais só chegam a ser conhecidas por aqueles que as amam."
 
" O homem é um animal solitário, um animal infeliz, só a morte pode concertar a gente. " - Os Prisioneiros
 
" Escrever é tomar decisões constantemente. "
 
Camilla da Silva Costa, nº 5   
Betsy
Por Rubem Fonseca
 
 
Betsy esperou a volta do homem para morrer.

Antes da viagem ele notara que Betsy mostrava um apetite incomum. Depois surgiram outros sintomas, ingestão excessiva de água, incontinência urinária. O único problema de Betsy até então era a catarata numa das vistas. Ela não gostava de sair, mas antes da viagem entrara inesperadamente com ele no elevador e os dois passearam no calçadão da praia, algo que ela nunca fizera. No dia em que o homem chegou, Betsy teve o derrame e ficou sem comer. Vinte dias sem comer, deitada na cama com o homem. Os especialistas consultados disseram que não havia nada a fazer. Betsy só saia da cama para beber água.

O homem permaneceu com Betsy na cama durante toda a sua agonia, acariciando seu corpo, sentindo com tristeza a magreza de suas ancas. No último dia, Betsy, muito quieta, os olhos azuis abertos, fitou o homem com o mesmo olhar de sempre, que indicava o conforto e o prazer produzidos pela presença e pelos carinhos dele. Começou a tremer e ele a abraçou com mais força. Sentindo que os membros dela estavam frios, o homem arranjou para Betsy uma posição confortável na cama. Então ela estendeu o corpo, parecendo se espreguiçar, e virou a cabeça para trás, num gesto cheio de langor. Depois esticou o corpo ainda mais e suspirou, uma exalação forte. O homem pensou que Betsy havia morrido. Mas alguns segundos depois ela emitiu novo suspiro. Horrorizado com sua meticulosa atenção o homem contou, um a um, todos os suspiros de Betsy. Com o intervalo de alguns segundos ela exalou nove suspiros iguais, a língua para fora, pendendo do lado da boca. Logo ela passou a golpear a barriga com os dois pés juntos, como fazia ocasionalmente, apenas com mais violência. Em seguida, ficou imóvel. O homem passou a mão de leve no corpo de Betsy. Ela se espreguiçou e alongou os membros pela última vez. Estava morta. Agora, o homem sabia, ela estava morta.

A noite inteira o homem passou acordado ao lado de Betsy, afagando-a de leve, em silêncio, sem saber o que dizer. Eles haviam vivido juntos dezoito anos.

De manhã, ele a deixou na cama e foi até a cozinha e preparou um café puro. Foi tomar o café na sala. A casa nunca estivera tão vazia e triste.

Felizmente o homem não jogara fora a caixa de papelão do liqüidificador. Voltou para o quarto. Cuidadosamente, colocou o corpo de Betsy dentro da caixa. Com a caixa debaixo do braço caminhou para a porta. Antes de abri-la e sair, enxugou os olhos. Não queria que o vissem assim.

Rubem Fonseca: de seu livro "Histórias de amor" (contos), editado por Cia. das Letras - São Paulo, 1997, pág. 09, extraímos o texto acima.
 
Camilla da Silva Costa, n° 5

 

Cidade de Deus

O nome dele é João Romeiro, mas é conhecido como Zinho na Cidade de Deus, uma favela em Jacarepaguá, onde comanda o tráfico de drogas. Ela é Soraia Gonçalves, uma mulher dócil e calada. Soraia soube que Zinho era traficante dois meses depois de estarem morando juntos num condomínio de classe média alta da Barra da Tijuca. Você se importa?, Zinho perguntou, e ela respondeu que havia tido na vida dela um homem metido a direito que não passava de um canalha. No condomínio Zinho é conhecido como vendedor de uma firma de importação. Quando chega uma partida grande de droga na favela Zinho some durante alguns dias. Para justificar sua ausência Soraia diz, para as vizinhas que encontra no playground ou na piscina, que o marido está viajando pela firma. A polícia anda atrás dele, mas sabe apenas o seu apelido, e que ele é branco. Zinho nunca foi preso.
Hoje à noite Zinho chegou em casa depois de passar três dias distribuindo, pelos seus pontos, cocaína enviada pelo seu fornecedor em Puerto Suarez e maconha que veio de Pernambuco. Foram para a cama. Zinho era rápido e rude e depois de foder a mulher virava as costas para ela e dormia. Soraia era calada e sem iniciativa, mas Zinho queria ela assim, gostava de ser obedecido na cama como era obedecido na Cidade de Deus.

“Antes de você dormir posso te perguntar uma coisa?”

“Pergunta logo, estou cansado e quero dormir, amorzinho.”

"Você seria capaz de matar uma pessoa por mim?"

“Amorzinho, eu mato um cara porque ele me roubou cinco gramas, não vou matar um sujeito que você pediu? Diz quem é o cara. É aqui do condomínio?”

“Não”.

“De onde é?”

“Mora na Taquara”.

“O que foi que ele te fez?”

“Nada. Ele é um menino de sete anos. Você já matou um menino de sete anos?”

“Já mandei furar a bala as palmas das mãos de dois merdinhas que sumiram com uns papelotes, pra servir de exemplo, mas acho que eles tinham dez anos. Por que você quer matar um moleque de sete anos?”

“Para fazer a mãe dele sofrer. Ela me humilhou. Tirou o meu namorado, fez pouco de mim, dizia para todo mundo que eu era burra. Depois casou com ele. Ela é loura, tem olhos azuis e se acha o máximo.”

“Você quer se vingar porque ela tirou o seu namorado? Você ainda gosta desse puto, é isso?”

“Gosto só de você, Zinho, você é tudo para mim. Esse merda do Rodrigo não vale nada, só sinto desprezo por ele. Quero fazer a mulher sofrer porque ela me humilhou, me chamou de burra, ria na frente dos outros.”

“Posso matar esse puto.”

“Ela nem gosta dele. Quero fazer essa mulher sofrer muito. Morte de filho deixa a mãe desesperada.”

“Está bem. Você sabe onde o menino mora?”

“Sei.”

“Vou mandar pegar o moleque e levar para a Cidade de Deus.”

“Mas não faz o garoto padecer muito.”

“Se essa puta souber que o filho morreu sofrendo é melhor, não é? Me dá o endereço. Amanhã mando fazer o serviço, a Taquara é perto da minha base.”

De manhã bem cedo Zinho saiu de carro e foi para a Cidade de Deus. Ficou fora dois dias. Quando voltou, levou Soraia para a cama e ela docilmente obedeceu a todas as suas ordens, Antes de ele dormir, ela perguntou, “você fez aquilo que eu pedi?”

“Faço o que prometo, amorzinho. Mandei meu pessoal pegar o menino quando ele ia para o colégio e levar para a Cidade de Deus. De madrugada quebraram os braços e as pernas do moleque, estrangularam, cortaram ele todo e depois jogaram na porta da casa da mãe. Esquece essa merda, não quero mais ouvir falar nesse assunto", disse Zinho.
“Sim, eu já esqueci.”

Zinho virou as costas para Soraia e dormiu. Zinho tinha um sono pesado. Soraia ficou acordada ouvindo Zinho roncar. Depois levantou-se e pegou um retrato de Rodrigo que mantinha escondido num lugar que Zinho nunca descobriria. Sempre que Soraia olhava o retrato do antigo namorado, durante aqueles anos todos, seus olhos se enchiam de lágrimas. Mas nesse dia as lágrimas foram mais abundantes.

“Amor da minha vida”, ela disse, apertando o retrato de Rodrigo de encontro ao seu coração sobressaltado.


Texto extraído do livro "Histórias de Amor", Cia. das Letras - 1997 - São Paulo, pág. 11.

Camilla da Silva Costa, n° 5

O Cobrador


Investigador Miro trouxe a mulher à minha presença.
Foi o marido, disse Miro, desinteressado. Naquela delegacia de subúrbio era comum briga de marido e mulher.
Ela estava com dois dentes partidos na frente, os lábios feridos, o rosto inchado. Marcas nos braços e no pescoço.
Foi o seu marido que fez isso?, perguntei.
Não foi por mal, doutor, eu não quero dar queixa.
Então por que a senhora veio aqui?
Na hora eu fiquei com raiva, mas já passou. Posso ir embora? Não.
Miro suspirou. Deixa a mulher ir embora, disse ele entre dentes.
A senhora sofreu lesões corporais, é um crime de ação pública, independe da sua queixa. Vou enviá-la a exame de corpo delito, eu disse.
Ubiratan é nervoso mas não é má pessoa, ela disse. Por favor, não faz nada com ele.
Eles moravam perto. Decidi ir falar com Ubiratan. Uma vez, em Madureira, eu havia convencido um sujeito a não bater mais na mulher; outros dois, quando trabalhei na Delegacia de Jacarepaguá, também haviam sido persuadidos a tratar a mulher com decência.
Um homem alto e musculoso abriu a porta. Estava de calção, sem camisa. Num canto da sala havia uma barra de aço com pesadas anilhas de ferro e dois halteres pintados de vermelho. Ele devia estar fazendo exercícios quando cheguei. Seus músculos estavam inchados e cobertos por grossa camada de suor. Ele exalava a força espiritual e o orgulho que uma boa saúde e um corpo cheio de músculos dão a certos homens.
Sou da Delegacia, eu disse.
Ah, então ela foi mesmo dar queixa, a idiota, Ubiratan resmungou. Abriu a geladeira, tirou uma lata de cerveja, destampou e começou a beber.
Vai e diz para ela voltar logo para casa senão vai ter.
Acho que você ainda não percebeu o que vim fazer aqui. Vim convidá-lo para depor na Delegacia.
Ubiratan atirou a lata vazia pela janela, pegou a barra de ato e levantou-a sobre a cabeça dez vezes, respirando ruidosamente pela boca, como se fosse uma locomotiva.
Você acha que eu tenho medo da polícia?, ele perguntou, olhando com admiração e carinho os músculos do peito e dos braços.
Não é preciso ter medo. Você vai lá apenas para depor. Ubiratan pegou meu braço e me sacudiu.
Cai fora, tira nojento, você está me irritando.
Tirei o revólver do coldre. Posso processá-lo por desacato, mas não vou fazer isso. Não complique as coisas, venha comigo à Delegacia, em meia hora estará livre, eu disse, calmamente e com delicadeza.
Ubiratan riu. Qual é tua altura, anãozinho?
Um metro e setenta. Vamos embora.
Vou tirar essa merda da sua mão e mijar no cano, anãozinho. Ubiratan contraiu todos os músculos do corpo, como um animal se arrepiando para assustar o outro, e estendeu o braço, a mão aberta para agarrar o meu revólver. Atirei na sua coxa. Ele me olhou atônito.
Olha o que você fez com o meu sartório!, Ubiratan gritou mostrando a própria coxa, você é maluco, o meu sartório!
Sinto muito, eu disse, agora vamos embora senão atiro na outra perna.
Pra onde você vai me levar, anãozinho?
Primeiro para o hospital, depois para a Delegacia.
Isso não vai ficar assim, anãozinho, tenho amigos influentes.
O sangue escorria pela sua perna, pingava no assoalho do carro. Desgraçado, o meu sartório! Sua voz era mais estridente do que a sirene que abria nosso caminho pelas ruas.

2.

Manhã quente de dezembro, rua São Clemente. Um ônibus atropelou um menino de dez anos. As rodas do veículo passaram sobre a sua cabeça deixando um rastro de massa encefálica de alguns metros. Ao lado do corpo uma bicicleta nova, sem um arranhão.
Um guarda de trânsito prendeu em flagrante o motorista. Duas testemunhas afirmaram que o ônibus vinha em grande velocidade. O local do acidente foi isolado cuidadosamente.
Uma velha, mal vestida, com uma vela acesa na mão, queria atravessar o cordão de isolamento, "para salvar a alma do anjinho". Foi impedida. Com os outros espectadores, ela ficou contemplando o corpo de longe. Separado, no meio da rua, o cadáver parecia ainda menor.
Ainda bem que hoje é feriado, disse um guarda, desviando o trânsito, já imaginou isso num dia comum?
Aos gritos uma mulher rompeu o cordão de isolamento e levantou o corpo do chão. Ordenei que ela o largasse. Torci seu braço, mas ela não parecia sentir dor, gemia alto, sem ceder. Eu e os guardas lutamos com ela até conseguir tirar o morto dos seus braços e colocá-lo no chão onde ele devia ficar, aguardando a perícia. Dois guardas arrastaram a mulher para longe.
Esses motoristas de ônibus são todos uns assassinos, disse o perito, ainda bem que o local está perfeito, da para fazer um laudo que nenhum rábula vai derrubar.
Fui até o carro da polícia e sentei no banco da frente, por alguns momentos. Meu paletó estava sujo de pequenos despojos do morto. Tentei limpar-me com as mãos. Chamei um dos guardas e mandei trazer o preso.
No caminho da delegacia olhei para ele. Era um homem magro, aparentando uns sessenta anos, e parecia cansado, doente e com medo. Um medo, uma doença e um cansaço antigos, que não eram apenas daquele dia.

3.

Cheguei ao sobrado na rua da Cancela e o guarda que estava na porta disse: primeiro andar. Ele está no banheiro.
Subi. Na sala uma mulher com os olhos vermelhos me olhou em silêncio. Ao seu lado um menino magro, meio encolhido, de boca aberta, respirando com dificuldade.
O banheiro? Ela me apontou um corredor escuro. A casa cheirava a mofo, como se os encanamentos estivessem vazando no interior das paredes. De algum lugar vinha um odor de cebola e alho fritos.
A porta do banheiro estava entreaberta. O homem estava lá.
Voltei para a sala. Já havia feito todas as perguntas a mulher quando o perito Azevedo chegou.
No banheiro, eu disse.
Anoitecia. Acendi a luz da sala. Azevedo me pediu ajuda. Fomos para o banheiro.
Levanta o corpo, disse o perito, para eu soltar o laço. Segurei o morto pela barriga. Da sua boca saiu um gemido.
Ar preso, disse Azevedo, esquisito não é? Rimos sem prazer. Pusemos o corpo no chão úmido. Um homem franzino, e barba por fazer, o rosto cinzento, parecia um boneco de cera.
Ele não deixou bilhete, nada, eu disse.
Eu conheço esse tipo, disse Azevedo, quando não agüentam mais eles se matam depressa, tem que ser depressa senão se arrependem.
Azevedo urinou no vaso sanitário. Depois lavou as mãos na pia e enxugou-as nas fraldas de sua camisa.

Conto extraído do livro "O Cobrador", Ed. Nova Fronteira - Rio de Janeiro, 1979, pág.127


Camilla da Silva Costa, n° 5

terça-feira, 11 de setembro de 2012

Rubem Fonseca uma nova corrente na literatura brasileira contemporânea que ficou conhecida ,em 1975 através de Alfredo Bosi ,como brutalista . Em seus contos e romances utiliza-se de uma maneira  de narra na qual destacam-se personagens que são ao mesmo tempo narradores.Várias das suas histórias (em especial, os   romances)são apresentadas sob a estrutura de uma narrativa policial, com fortes elementos de oralidade.O fato de ter atuado como advogado,aprendido medicina legal,bem como ter sido comissário de polícia ,nos anos 50 no subúrbio do Rio de Janeiro teria contribuído para o escritor compor histórias do submundo dentro dessa linguagem direta.Muito provavelmente devido a isso,vários dos personagens principais em sua obra são(ou foram)
delegados,inspetores,detetives particulares ,advogados criminalistas,ou,ainda  ,escritores.
Além do tom nitidamente policialesco ,em que há geralmente um crime ou um mistério a ser desvendado ,sua obra pode ser vista como uma paródia do gênero policial tradicional,visto que os crimes,atuam apenas como um disfarce de sua críticas a uma sociedade opressora do indivíduo .No gênero policial tradicional o mistério funciona como uma casca que encerra um caroço ;ali a "morte não é nada.O assassinato não é nada .O que transtorna é a selvageria do crime ,porque ela parece inexplicável ".(BOILEAU e NARCEJAC ,1991:11)A Rubem Fonseca -mais do que simplesmente deslindar o ato criminoso - interessa registrar o cotidiano terrível das grandes cidades e, simultaneamente ,por a nu os dramas humanos desencadeados pelas ações transgressoras da ordem .
Rubem Fonseca é pródigo em deixar as coisas para o leitor completar .Ao escrever ,o autor deve supor um interlocutor inteligente ,culto,atento.Com uma inesgotável  amplitude de experiências e observações ,tornou-se capaz de escrever com a mesma verosimilhança sobre halterofilistas e executivos,marginais e financistas,delegados de polícia e assassinos profissionais ,garotas de programa e pobres diabos sem destino pelas ruas do Rio de Janeiro .Tem,pois, como matéria-prima os dois extremos da nação : os que vivem a margem do sistema e os que constituem o núcleo privilegiado do mesmo.
O que mais nos romances e contos de Rubem Fonseca é o amoralismo dos bandidos .Em nenhum momento eles são atormentados por qualquer remorso ou culpa .São perversos e frios ,venham dos estratos superiores ou das camadas populares .As cidades parecem vazias de inquietação ética , a não ser alguns indivíduos que, em meio ao horror ,agem movidos por um sentimento qualquer de justiça .A relação entre "mocinho" e "bandido" está presente em suas obras ,contudo não nos é possível identificar exatamente quem é um e quem é o outro ,pois há uma grande transitividade entre ambos fazendo com que ,por exemplo,Wexler suponha que o criminoso em A grande arte seja ,até mesmo o próprio Mandrake ":Pode ter sido qualquer pessoa .Pode ter sido você ,Mandrake".(FOnseca 1983:296).
Rubem Fonseca é extremamente reservado ,avesso a entrevistas e fotos.Já recebeu vários prêmios ,incluindo alguns ligados ao cinema ,área em trabalhou como roteirista.

Dirceu Neto n°7

"Neste momento estou desenvolvendo o começo da história que iniciei com o título que lhe deu o sopro inicial de vida. No quiosque de livros da praça li um poema no qual o autor (roubei dele o título da minha história) diz que o mundo é doloroso, os seres humanos não merecem existir e ele, poeta, suspeita que a crueldade da sua imaginação está de certa forma conectada com seus impulsos criativos. Matar a velha, não a crueldade, como disse o poeta, mas a força do meu ato e não apenas da minha imaginação foi a impulsão que fará de mim um verdadeiro escritor. Tenho, agora, o começo, tenho o meio e o fim." (Pequenas criaturas - "Começo")

LIVROS PUBLICADOS NO BRASIL:

-Os prisioneiros (contos, 1963),
-A coleira do cão (contos, 1965)
-Lúcia McCartney (contos, 1967)
-O caso Morel (romance, 1973)
-Feliz Ano Novo (contos, 1975)
-O homem de fevereiro ou março (antologia, 1973)
-O cobrador (contos, 1979)
-A grande arte (romance, 1983)
-Bufo & Spallanzani (romance, 1986)
-Vastas emoções e pensamentos imperfeitos (romance, 1988)
-Agosto (romance, 1990)
-Romance negro e outras histórias (contos, 1992)
-O selvagem da ópera (romance, 1994)
-Contos reunidos (contos, 1994)
-O Buraco na parede (contos, 1995)
-Romance negro, Feliz ano novo e outras histórias, Editora Ediouro, Rio de Janeiro, 1996.
-Histórias de Amor (contos, 1997)
-Do meio do mundo prostituto só amores guardei ao meu charuto (novela, 1997)
-Confraria dos Espadas (contos, 1998)
-O doente Molière (novela, 2000)
-Secreções, excreções e desatinos (contos, 2001)
-Pequenas criaturas (contos, 2002)
-Diário de um Fescenino (contos, 2003)
-64 Contos de Rubem Fonseca (contos,2004)
-Ela e outras mulheres (contos, 2006)
-O romance morreu (crônicas, 2007)



Luiza.P.Faza n°23

História




Nascido em Juiz de Fora , Minas Gerais , em 11 de maio de 1925 , José Rubem Fonseca é formado em Direito , tendo exercido várias atividades antes de dedicar-se inteiramente à literatura. Em 31 de dezembro de 1952 iniciou sua carreira na polícia , como comissário , no 16° Distrito Policial , em São Cristóvão , no Rio de Janeiro. Muitos dos fatos vividos naquela época e dos seus companheiros de trabalho estão imortalizados em seus livros. Aluno brilhante da Escola de Polícia , não demonstrava , então , pendores literários. Ficou pouco tempo nas ruas. Foi , na maior parte do tempo em que trabalhou , até ser exonerado em 06 de fevereiro de 1958 , um policial de gabinete. Cuidava do serviço de relações públicas da polícia . Em julho de 1954 recebeu uma licença para estudar e depois dar aulas sobre esse assunto na Fundação Getúlio Vargas, no Rio. Na Escola de Polícia destacou-se em Psicologia. Contemporâneos de Rubem Fonseca dizem que, naquela época, os policiais eram mais juízes de paz, apartadores de briga, do que autoridades. Zé Rubem via, debaixo das definições legais, as tragédias humanas e conseguia resolvê-las. Nesse aspecto, afirmam, ele era admirável. Escolhido, com mais nove policiais cariocas, para se aperfeiçoar nos Estados Unidos, entre setembro de 1953 e março de 1954, aproveitou a oportunidade para estudar administração de empresas na New York University. Após sair da polícia, Rubem Fonseca trabalhou na Light até se dedicar integralmente à literatura. É viúvo e tem três filhos.

Gabriel Marques. 13