sexta-feira, 30 de novembro de 2012

O Caso Morel



Análise da Obra:

Este trabalho apresenta a análise de quatro personagens do sexo feminino presentes no romance O caso Morel, de Rubem Fonseca. Tais personagens são analisadas por serem as mais significativas em relação à narrativa e à evolução da obra, e em dado momento do romance, formarem uma família cuja estrutura não atende às regras morais tradicionais. Todas são de origens sociais diferentes e, de alguma forma, possuem fatores comportamentais particulares que não se adéquam aos padrões morais em vigor naquela época. O romance foi escrito em 1973, e a narrativa também transcorre em período semelhante. Assim, tendo o livro sido escrito e passado em um tempo de transições culturais no Brasil e no mundo, este trabalho visa, primeiramente, estudar a condição feminina ao longo da história brasileira, para compreender o contexto histórico no qual a obra se encontra, a fim de, posteriormente, analisar o comportamento dessas mulheres.

Resumo da Obra:


Matos e Vilela se encontram na porta da penitenciária. Sozinho Vilela teria dificuldade para entrar, mas com Matos as portas são abertas. Chegam à cela de Morel.
Cubículo pequeno. Cama estreita com cobertor cinzento. Mesa cheia de livros; rádio portátil; pia; latrina; mais livros empilhados no chão.

Morel é um homem magro, pálido, cabelos escuros, grisalhos nas têmporas. Rugas fundas cortam seu rosto. Veste uma camisa branca e calça cinza, amassadas. Possivelmente dorme com aquela roupa.
"Tenho dois dos seus livros aqui."

Procura os livros, acha apenas um deles.
"O outro sumiu. Você não quer sentar?" Morel indica a Vilela a única cadeira da cela. "Vou deixar vocês sozinhos. Tenho ainda muita coisa para fazer", diz Matos.
"Obrigado." Morel aperta a mão de Matos.
"Vocês vão se dar bem. Quando quiser sair, bate na porta e manda chamar o inspetor Rangel." Matos sai.
"Nem sei como começar", diz Morel. "O Rei disse para Alice 'começa no princípio, depois continua, chega ao fim e pára'. Mas onde é o princípio?"
Vilela: "Você também pode começar do fim e terminar no princípio, ou no meio".
"Preciso da sua ajuda."
"Diga como."
"Eu preciso escrever um livro. Matos não lhe falou?"
"Disse que você queria falar com um escritor."
"Quero ajuda para escrever um livro."
"Quanto menos ajuda dos outros, melhor." Morel reflete por instantes.
"Estou muito arrasado."
"É assim mesmo que se escreve."
"Eu quero ter certeza de que vou ser publicado."
"Essa certeza você não pode ter."

Morel sentado na capa. Deita lentamente, com os braços cruzados sobre os olhos. Vilela pega um livro, sobre a mesa. Visão e invenção.
"Adianta escrever, se ninguém vai ler?"
"Adianta, sempre."
"Passo as noites sonhando com a minha carreira literária", a ironia na voz é forçada.
"Você quer um biscoito?"
Uma lata de biscoitos debaixo da cama. Comem biscoitos.
"Onde você arranjou esse monte de livros?"
"São meus."
"Quem traz?"
"O doutor Matos. Dei a ele a chave da minha casa. Eu peço os livros ele vai na minha estante e apanha. Às vezes ele me compra um livro, mas o gosto dele não combina muito com o meu."
"Você já escreveu alguma coisa?", pergunta Vilela.


II - AVERTISSEMENT
Ce livre n'est pas fait pour les enfants, ni même pour les jeunes gens, encore moins pour les jeunes filles. Il s'adres- se exclusivement aux gens mariés, aux pères et mères de famille, aux personnes sérieuses et mûres qui se préoccu- pent des questions sociales et cherchent à enrayer le mou- vement de décadence qui nous entraîne aux abîmes. Son but n'est pas d'amuser, mais d'instruire et de moraliser. Dr. Surbled, 1913.

Qualquer semelhança com pessoas vivas ou mortas é mera coincidência. Lembro-me de que quando entrei no cabaré, em São Paulo, a velha Dorotéia foi logo pedindo que eu tocasse guitarra para ela. Infelizmente não era possível, eu não sabia tocar o instrumento.

Em Belo Horizonte o céu era limpo. Eu saía com os bolsos cheios de tangerinas e andava pelas ruas tentando chutar todos os caroços. Em bh eu não era músico.
"Vi logo pela sua cara que você era um homem do mar", disse Marlene Lima, que passou a vida tentando ser artista de cinema e agora era uma trintona jogada fora. Estávamos na Zona. Eu descrevia para Marlene as minhas aventuras pelos países da Ásia.

No Rio voltei à minha impostura de músico de orquestra. O porteiro do hotel me olhava respeitoso, ele queria ser músico, tentava o sax, o trombone, mas era fraco do peito. Boîtes da cidade.
"Posso oferecer-lhe uma bebida?"
"Quem é você? Um industrial rico ou um vagabundo?"
"Industrial rico."
"De onde?"
"São Paulo."
"Ah. São Paulo... É longe de Porto Alegre?"

Ela tinha um sotaque de gringa européia. Grande, loura, olhos azuis. Havia conhecido um sujeito em Porto Alegre.
"Você conhece ele? Carlos Rocha?"
"Não."

Segurou no meu pau, perguntou: "Quer que eu lhe faça feliz?". Queria me fazer feliz ali no cantinho do bar. Rápido e sem dor.
"Aqui não, vamos para outro lugar", eu disse.
"As pessoas pagam duzentos para ficar comigo."
"Está bem."
"Mas só se você tiver camisinha." Saí e fui à farmácia.

Voltei para onde ela estava. Mostrei o pacotinho.Eram três horas da manhã.
Saímos para pegar um táxi.
"Ilha do Governador."

O motorista não queria ir. Violento bate-boca entre nós. Eu e a mulher vencemos. Uma pobre casa, incrivelmente quente. Dezembro. As paredes cheias de fotografias. Ela aos seis anos, aos sete. Aos quinze, aos dezoito. Sempre só. Nem pai, nem mãe. Só. Nem amigos.
"Você sabe, nós os trapezistas temos os pés muito afiados", ela disse. Foi então que eu soube que ela tinha sido trapezista, quando menina. Viera com os pais, que trabalhavam no Circo Sarrazani.

Pedi um uísque. Ela só tinha coca ou guaraná.
"Meu amigo de Porto Alegre é um intelectual. Eu não confio em intelectuais."
"Nem eu."

Durante quinze minutos ficou tirando grampos da cabeça. Era bonita. Abri o fecho da minha calça e me exibi para ela.
"Calma, rapaz, onde é que está a camisinha?"

Os romanos inventaram a camisa-de-vênus, conforme Antonius Liberalis conta nas Metamorfoses. Em 1564 o dr. Fallopius redescobriu-a, ao recomendar o uso de um saco de linho como preventivo das infecções venéreas.*
(*) A narrativa de Paul Morel é freqüentemente interrompida por citações. Algumas são dele mesmo, outras de autores provavelmente lidos na prisão.


Me deu vontade de ir embora.
"Vou-me embora."
"Calma, rapaz."

Fui até o espelho que havia no quarto. Na verdade eu estava mesmo com a cara perigosa de sujeito com gonorréia. Tentei telefonar para um táxi, sem conseguir.
"Vou-me embora."
Pela cara da ex-trapezista vi que ela estava tão na merda quanto eu.
"É por causa da camisinha?" Não tinha mais o ar de uma pessoa de pés espertos. Era uma mulher cansada.
"Não."
"Os duzentos cruzeiros? Essa é a razão?"
"Eu quero ir embora, é só isso."

Colocou o polegar na boca e começou a roer as unhas.
"Até logo", eu disse.
Ela disse: "Você não tem o meu telefone". Sem inflexão, como se não soubesse o que estava dizendo.
Eu: "É, não tenho o seu telefone".
Ela: "Você não tem o meu telefone". Saí.

Pensei: Jamais alguém andou por estes lugares a pé, de madrugada. Fiquei com medo. Gritei "Paul Morel" várias vezes, para me habituar com o nome. Na avenida Brasil apanhei um táxi. Ao chegar no hotel encontrei um telegrama dizendo que minha mãe havia morrido e sido enterrada, na terra dela. Trazer de volta o corpo custava muito dinheiro. Tempo.

Acordei, como sempre, com uma sensação de desperdício, naquele dia em que tudo começou e reencontrei Joana. Muitos anos se passaram.

Levantei da cama enojado comigo mesmo, sem lembrar direito se o papel ridículo que eu fizera tinha sido ontem ou na semana passada. Onde? Na casa de alguém? O que tinha acontecido?

Meu quarto todo desarrumado. Ao me separar de Cristina, uma neurótica compulsiva, eu dissera "quando você for embora, vou virar esta merda de pernas para o ar, chega de arrumação, aspiradores de pó, faxineiros que mexem nos meus livros e nos meus quadros, isto vai virar uma mata virgem".

As roupas jogadas no chão, junto com câmeras, lentes, fotos, garrafas, livros, pedaços de sucata, telas, tubos de tinta, discos, copos. Minha cabeça um palimpsesto.

Debaixo do chuveiro, sentado no chão, a água fria caindo em cima de mim. Isto que você está sentindo é náusea, eu disse em voz alta. O pior é que não havia vômito nenhum para sair, minha ansiedade era outra.


O telefone tocou. Saí pingando do chuveiro, disse que não estava ninguém em casa, aquilo era uma gravação, "as palavras o vento não leva, cuidado com o acetato".
"Você está sóbrio?"
"Não."
"Espera aí, não desliga, é o Roberto."
Queria que eu fizesse uma foto de cerveja.
"Não vou perder tempo com isso."
"É um challenge."

Em algum lugar da casa havia um monte de revistas internacionais de arte publicitária, e em nenhuma delas existia uma única foto de cerveja. Se houvesse, era uma merda.
"Vamos conversar", insistiu. Era um homem paciente.
"Agora estou todo molhado. Você me tirou do chuveiro."
"Eu ligo depois, então."

Ensaboando meu corpo: cada vez mais magro, as olheiras negras, uma figura romântica. As mulheres todas dando bola para mim. Repugnância.

Naquele dia eu estava decidido a parar de beber, me reintegrar na sociedade, ceder, transigir, maneirar.
"Farei tudo o que quiserem!", exclamei olhando o meu rosto no espelho.

O telefone tocou. Cocktail na casa de Miguel Serpa. Depois novamente o Roberto. Ele era diretor da Andrade & Leitão. Nada temos a temer.Exceto as palavras.
"Você pode conversar?"
"Posso", respondi.
"Então? Topa fazer as fotos?" Pensei um pouco.
"Faço."
"Quando?"
"Amanhã. Hoje estou muito abafado."
"Certo. Amanhã. Um abraço. Conto contigo."
"Pode contar."

O verdadeiro escritor nada tem a dizer. Tem uma maneira de dizer nada.Miguel Serpa recebeu-me com muita deferência.

Muitas mulheres. Identifiquei logo a sra. Elisa Gonçalves. Coberta por um vestido longo, os movimentos equilibrados, tensos; sentia no meu próprio corpo cada passo que ela dava, como se estivéssemos abraçados. Elisa caminhava impaciente pelos salões, fumando, inquieta. Eu a conhecia de retrato e lenda. Nunca me interessou, mas naquele dia senti, inesperadamente, uma terrível atração por ela.

Elisa novamente: cara magra, ossuda, cabelos negros, boca larga de lábios grossos, olhos escuros brilhantes, um rosto alerta. Fiquei imaginando atos lascivos com ela. Parei a certa distância, observando-a sem que ela percebesse.

Nesse instante surgiu Joana, acompanhada dos pais, embaixador e embaixatriz Monteiro Viana. Tentei segui-los com o olhar, mas eles logo sumiram no meio da multidão. Havia, no mínimo, trezentas pessoas no enorme apartamento de Serpa. Eu gostaria de ver Joana perto de Elisa. Joana dizia de Elisa: "Uma velhota deslumbrada que todo ano corta as próprias execráveis pelancas". Joana tinha vinte anos, exatos. Elisa no fim dos trinta. Aproximei-me de Elisa. Ela e os circundantes pararam de falar.
"Todos os seus retratos foram malfeitos, nenhum tem profundidade, nenhum é você." "Retratos?", Elisa, polidamente.
"Fotos. Só conheço as fotos. Permita que eu me apresente."
"Eu sei quem é você e não estou interessada." Elisa voltou a conversar com a pessoa a seu lado.

Vaguei pelos salões do Serpa, depois do desprezo de Elisa, bebendo com rapidez para ficar embriagado. Encontrei Joana.
"Por que não damos o fora daqui?", perguntou Joana.
"Aonde você quer ir?"
"A um lugar onde você possa me explicar o que são as séries de Fibonnacci", disse Joana, rindo.
"Eu estou sem vontade. Acho que estou ficando impotente."
"Você quer ficar aqui no meio desses arrivistas enfarpelados?"
"Já disse que estou broxa. Ah!, quem me dera ser um campeão de alcova!"

A beleza dela fez o meu pulso martelar violentamente e secou minha boca. Ninguém poderia deixar de admirá-la: era muito delgada, com seios pequenos, a barriga plana, os flancos de linhas retas; o seu triângulo estava apenas eriçado por uma penugem macia. Ela me tantalizava, os meus desejos se exasperaram. Levantei o seu corpo e esmaguei os lábios contra os dela.
"Eu faço você ficar com vontade."
"Não sei."
"Vamos sair daqui e comprar um chicote", Joana disse.
"A esta hora não encontramos uma loja onde comprar isto", eu disse, sentindo um forte tremor correr por dentro do meu corpo.
"Eu vou na Hípica e arranjo um. Você não quer me bater de chicote?"
"Está bem."
"Eu saio na frente. Vou buscar o chicote e te encontro no apartamento." Exit Joana.

Voltei à sala para ver se apanhava alguma mulher. Eu só pensava nisso. Encontrei.
"Você tem um papel na bolsa?"
"Deixa eu ver. Tenho."
"Tem uma caneta?"
"Tenho lápis de sobrancelha."
"Então escreve nesse papel o seu nome e o número do telefone." Botei o papel no bolso e saí.No papel estava escrito: Lígia, e o número do telefone.

Peguei meu carro. Fui para o apartamento. Liguei o som. Esperei Joana, pensando.Acima de tudo, seja verdadeiro com você mesmo.

Joana chegou.
"Trouxe o chicote?"
"Trouxe."

Joana me entregou um embrulho. Abri. Um chicote de cabo de prata, para ser usado em cavalos de raça.

Olhei para Joana, os colares no pescoço, o lenço na cabeça. Senti uma grande ternura por ela. Abracei-a.
"Eu gosto muito de você."
"Eu também gosto muito de você."
"Você quer ficar só namorando, sem fazer nada?", perguntei.
"É uma boa idéia."

Deitamos, abraçados.
"Estou aprendendo tanta coisa com você."
"Coisa nenhuma..."
"Cor. Eu não sabia nada de cor. Que mundo imenso..."
"A percepção da cor é uma experiência pessoal, extremamente subjetiva, é impossível ensinar a ver a cor, até mesmo ensinar a usar a cor é difícil".
"Fico em casa olhando meus livros de pintura e lembrando as coisas que você falou. Ontem, por exemplo, foi a visão esquizóide de Francis Bacon..."

A frase era literalmente minha. Eu tive vontade de dizer a ela que ultimamente eu falava cada vez menos. Arte tradicional, não queria mais fazer. Caixas, objetos, montagens fotográficas, fazia coisas assim, pois na verdade eu havia secado. Os cretinos dos críticos, esses pobres-diabos, rufiões de criatividade, ficavam descobrindo significados esotéricos naquele lixo todo.

Eu estava vazio, minha única saída era soldar sucata, colar, simular, tapear, copiar, enquanto pudesse.

Deitamos de barriga para cima. Joana, uma das pernas levantadas mostrando sua coxa longa e carnuda. Passei as mãos nas pernas de Joana. Ela estava com os braços abertos, as duas mãos sob a nuca; eu via as suas axilas, raspadas.Não diga sovaco. Diga axilas.

Beijei a cavidade que existia na junção do braço com o tronco. Fragrância de desodorante. Com a ponta da minha língua toquei o sovaco de Joana.
"Isso me deixa toda arrepiada."


Arrancamos a roupa, apressados.
"No chão", Joana disse.

Joana deitou-se, espreguiçou o corpo magro, esticando braços e pernas. Deitei-me sobre ela. Joana grudou o rosto no meu. Afastei o rosto dela.
"Quero ver a tua cara enquanto vou entrando dentro de você."

A euforia de Joana me encheu de alegria e exaltação.
"Abre os olhos", eu disse, "olha pra mim!"

Os dois olhando um para o outro, enquanto nossos corpos se movimentavam. Agarrei com força a cabeça de Joana, puxando-a de encontro a mim.
"Você não vai me bater?"
"Com o chicote?"

Nossos movimentos cada vez mais violentos.
"Como é que você vai me bater com o chicote? Aqui deitada? Ou eu saio correndo e você corre atrás de mim até me encurralar num canto e então me bate, bate, bate!..."
"Não sei, como você quiser", consegui dizer.
"Bate com a mão mesmo", Joana pediu.

Apoiado na mão direta, dei um tapa com a esquerda no rosto de Joana. Joana fechou os olhos, o rosto crispado, não emitiu um som sequer. Dei outro tapa, agora com a mão direita, com mais força.
"Bate, bate!"

Bati com violência. Joana deu um gemido lancinante. Continuei batendo, sem parar.
"Me chama de puta..."
"Sua puta!"
"Mais, mais!..."

Chamei Joana de todos os nomes sujos, bati com força no seu rosto. Nossos corpos cobertos de suor. Lambi o rosto de Joana, em fogo das pancadas recebidas. Nossas bocas sorviam o suor que pingava do rosto do outro. De dentro de mim, de um abismo fundo, vinha o orgasmo, uma pressão acumulada explodindo.


Camilla da Silva Costa - Número: 05

sábado, 29 de setembro de 2012

Aos 86 anos, o escritor Rubem Fonseca figura no topo da lista dos maiores nomes da literatura brasileira contemporânea. Ao lado de outro também grande, o curitibano Dalton Trevisan, Zé Rubem, como é conhecido pelo círculo restrito de amigos, construiu uma fama de recluso: nega-se a conceder entrevistas, não aprecia ser fotografado e, quando identificado em suas caminhadas “criativas” pelo bairro do Leblon, no Rio de Janeiro, costuma dizer que “não, ele não é Rubem Fonseca, é Ruy Castro”. Sobre a sua biografia e vida pessoal, pouco se sabe. Agora, uma pequena novela inédita, “José” (Nova Fronteira), vem à luz e tudo indica que o escritor que odeia falar de si próprio anda com propensões a memorialista. Como no título do livro, Rubem Fonseca se chama mesmo José. Como o personagem, descrito em terceira pessoa, ele é descendente de imigrantes portugueses, nasceu em Juiz de Fora e foi para o Rio aos 8 anos de idade. Também como o protagonista de sua história, estudou advocacia, foi comissário de polícia, tornou-se um escritor – e famoso: o do livro lembra encontros com a autora americana Susan Sontag e viagens a prêmios literários internacionais. Todas essas coincidências levam a crer que o autor esteja falando de seus anos de formação. Mas ainda assim, Rubem Fonseca mantém o mistério em torno da criatura que parece ser ele próprio e cujas andanças por um Rio de Janeiro hoje inexistente ganha às vezes ares de ficção. Ou seja, sempre que o leitor acredita que tudo o que está sendo dito é verdade, na sequência um engenhoso procedimento literário lança dúvida e coloca tudo a perder. Assim é Rubem Fonseca, que em sua nova obra, editada simultaneamente à coletânea de contos “Axilas e Outras Histórias Indecorosas”, se mantém fiel ao pensamento do poeta russo americano Joseph Brodsky, para quem a verdadeira biografia de um escritor está contida em seus livros. Essa frase aparece na seção de seu site dedicada à sua trajetória, que presenteia o leitor com apenas cinco linhas, secas e diretas como o estilo do autor. Foi nesse site, aliás, que Fonseca começou a esboçar “José”. Viciado em internet, que usa inclusive para conversar com amigos escritores como João Ubaldo Ribeiro, ele publicou partes da obra entre 2004 e 2005. Agora, ela ganha forma acabada. Num jogo de esconde-esconde, o leitor se depara com passagens que caberiam bem a um menino nascido numa família dada a modernidades – a mãe teria sido a primeira mulher a fumar e a dirigir um carro em Minas Gerais e o seu pai teria batizado o seu negócio, uma loja que vendia de “alfinetes a automóveis”, de Paris n’América. O garoto, que teria aprendido a ler sozinho, vivia, aliás, em Paris – os livros em que mergulhava eram todos de procedência francesa, nada para crianças de sua idade. E isso é verdade. Tatiane Goulart Mangia nº 35

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Rubem Fonseca inaugurou uma nova corrente na literatura brasileira contemporânea que ficou conhecida, em 1975 através de Alfredo Bosi, como brutalista. Em seus contos e romances utiliza-se de uma maneira de narrar na qual destacam-se personagens que são ao mesmo tempo narradores. Várias das suas histórias (em especial, os romances) são apresentadas sob a estrutura de uma narrativa policial com fortes elementos de oralidade. O fato de ter atuado como advogado, aprendido medicina legal, bem como ter sido comissário de polícia, nos anos 50 no subúrbio do Rio de Janeiro teria contribuído para o escritor compor histórias do submundo dentro dessa linguagem direta. Muito provavelmente devido a isso, vários dos personagens principais em sua obra são (ou foram) delegados, inspetores, detetives particulares, advogados criminalistas, ou, ainda, escritores. Além do tom nitidamente policialesco, em que há geralmente um crime ou um mistério a ser desvendado, sua obra pode ser vista como uma paródia do gênero policial tradicional, visto que os crimes atuam apenas como um disfarce de suas críticas a uma sociedade opressora do indivíduo. No gênero policial tradicional o mistério funciona como uma casca que encerra um caroço; ali a “morte não é nada. O assassinato não é nada. O que transtorna é a selvageria do crime, porque ela parece inexplicável” (Boileau e Narcejac, 1991: 11). A Rubem Fonseca – mais do que simplesmente deslindar o ato criminoso – interessa registrar o cotidiano terrível das grandes cidades e, simultaneamente, por a nu os dramas humanos desencadeados pelas ações transgressoras da ordem. Persistem, apesar disso, algumas semelhanças entre literaturas como a de Sir Arthur Conan Doyle (criador de Sherlock Holmes), que se insere nos parâmetros tradicionais do gênero, e a de Rubem Fonseca. Em ambos os autores, o enigma inicial fica por conta de um crime brutal (geralmente um homicídio) que gera toda uma atmosfera de mistério e tensão no romance e fará com que o leitor não desgrude os olhos de suas páginas antes do desenlace. Ainda podemos notar semelhança na maneira como se iniciam as investigações, isto é, o primeiro passo seja do investigador genial (Sherlock Holmes) ou do investigador comum (Mandrake, Guedes, Mattos, etc.), que será a visita ao local do crime em busca dos primeiros indícios que nortearão o processo investigativo. Além disso, encontramos outros exemplos quase irrelevantes do ponto de vista da comparação que estamos estabelecendo, mas que sugerem alguma semelhança, como a relação entre Mandrake e Wexler, em A grande arte (1983), e Sherlock e Watson como companheiros para solucionar crimes. As diferenças, porém, são mais fascinantes. Enquanto no gênero policial tradicional temos, segundo Pierre Boileau e Tomas Narcejac (1991), um investigador portador da graça metafísica e guiado pelo pensamento positivista, em Rubem Fonseca há um investigador simples, que, ao mesmo tempo, não é como a “máquina de pensar” de Poe ou Doyle e nem como “intuição demolidora” de Hammet ou Chandler (Boileau e Narcejac, 1991), escritores da literatura conhecida como noir. Num mundo sujo e infame, onde a moral e a ética foram dissolvidas, onde o vilão e o mocinho desaparecem, estas personagens erguem um protesto quase solitário (senão romântico) contra esta realidade que, apesar de tudo – ao contrário do romance policial tradicional – continuará suja e infame, seja o criminoso eliminado ou não. Os tempos são outros e os leitores que se aventuram por alguns dos romances policiais contemporâneos em busca de detetives com cara de herói, correm sério risco de abandonar o livro antes do final. Rubem Fonseca é pródigo em deixar as coisas para o leitor completar. Ao escrever, o autor deve supor um interlocutor inteligente, culto, atento. Com uma inesgotável amplitude de experiências e observações, tornou-se capaz de escrever com a mesma verossimilhança sobre halterofilistas e executivos, marginais e financistas, delegados de polícia e assassinos profissionais, garotas de programa e pobres diabos que vagam sem destino pelas ruas do Rio de Janeiro. Tem, pois, como matéria-prima os dois extremos da nação: os que vivem à margem do sistema e os que constituem o núcleo privilegiado do mesmo. O que mais choca nos romances e contos de Rubem Fonseca é o amoralismo dos bandidos. Em nenhum momento eles são atormentados por qualquer remorso ou culpa. São perversos e frios, venham dos estratos superiores ou das camadas populares. As cidades parecem vazias de inquietação ética, a não ser por alguns indivíduos que, em meio ao horror, agem movidos por um sentimento qualquer de justiça. A relação entre “mocinho” e “bandido” está presente em suas obras, contudo não nos é possível identificar exatamente quem é um e quem é o outro, pois há uma grande transitividade entre ambos fazendo com que, por exemplo, Wexler suponha que o criminoso em A grande arte seja, até mesmo o próprio Mandrake: “Pode ter sido qualquer pessoa. Pode ter sido você, Mandrake.” (Fonseca, 1983: 296). Não obstante as mais variadas combinações de “mocinho” & “bandido” nas personagens de Rubem Fonseca, vemos n’O caso Morel (1973) o ex-delegado e escritor Vilela & Morel; o criminalista Mandrake & Lima Prado/ Ajax ou Carmilo Fuentes, em A grande arte (1983); o detetive Guedes & Eugênio Delamare, em Bufo & Spallanzani (1985); o comissário Mattos & “O Anjo Negro” ou Fortunato, em Agosto (1990); e, para completarmos as obras aqui analisadas, Mandrake & Gustavo Flávio, em E do meio do mundo prostituto só amores guardei ao meu charuto (1997). Estes investigadores, inabaláveis na sua força motriz, trazem com certeza o espírito da literatura noir, desenvolvida e aperfeiçoada pelos escritores Hammet e Chandler, apesar de nem sempre se utilizarem dos mesmos meios para a solução dos crimes. Um dos temas dominantes na obra de Rubem Fonseca é a violência que percorre as ruas brasileiras, numa espécie de guerra civil não declarada. Certas passagens de contos ou narrativas longas, como é o caso do romance A grande arte (1983) apresentam uma brutalidade tão meticulosamente narrada que se tornam leitura quase insuportável para os espíritos delicados. Esse romance tem um enredo complexo: o enigma inicial se dá através de um assassino frio que desenha, com uma faca, uma letra “P” no rosto de cada vítima. Mas esse não é o único crime que o leitor deverá descobrir em parceria com Mandrake e Wexler. Muitos outros assassinatos, sem nenhum “P” desenhado no rosto das vítimas, começam a acontecer. No entanto, nessa obra, a chave central dos enigmas é o esclarecimento do que está por detrás do conglomerado Aquiles, misto de banco, financeira, entreposto de contrabando, agência de corrupção, etc. Algo intrigante em suas obras é condição existencial de suas personagens, sempre dominadas por uma atmosfera de violência latente. Mas, de onde virá a inspiração para a composição das misérias humanas das personagens de romances e contos de Rubem Fonseca, já que a condição humana e a violência neles formam um retrato que, a princípio, só foi proposto para a sociedade brasileira pelo próprio autor? Sua obra contém o retrato de uma violência diferenciada das obras literárias escritas, até então, no Brasil. O autor revela os primórdios de uma violência que se pulveriza em nossa sociedade nos dias de hoje, devido ao aumento das contradições sociais, sobretudo nos grandes centros urbanos do Brasil, a partir da década de 70. Isso não nos pode induzir a ver o autor como um mero retratista da violência urbana que assola o país. Sua obra apresenta maiores sutilezas, temas mais complexos e ricos, como a solidão dos indivíduos nas grandes metrópoles. A maioria de seus protagonistas vive opressa, aturdida pela sensação de isolamento e de vácuo na alma – reside nesse ponto uma outra forma de violência, a violência do indivíduo contra si, contra os outros por sua condição e de outros contra esse indivíduo solitário. A abundância de possibilidades eróticas oferecidas pelas cidades dá a suas personagens a obsessão sexual como única alternativa ao vazio da existência, como se na satisfação física do desejo residisse a última certeza de que ainda se está vivo. Essa sensação de isolamento está muito presente em todas as suas obras como, por exemplo, os romances Agosto (1990) e E do meio do mundo prostituto só amores guardei ao meu charuto (1997). Agosto (1990), obra que, apesar de fictícia, tem sua origem na história do Brasil, apresenta vários crimes que acontecem ao mesmo tempo e cujo clímax fica por conta do suicídio de Getúlio Vargas, que interfere muito na vida do comissário Mattos. Mattos é uma dessas personagens que tem no individualismo a marca de sua condição existencial. Podemos sugerir aqui a presença do próprio autor – executivo da empresa Light durante a década de 60, homem de ação e ativista político –, que participou ativamente do movimento que culminou no golpe de 64, mostrando, tal qual a personagem Mattos, sua crença em certos valores capitalistas como o individualismo que se realiza através da liberdade. E do meio do mundo prostituto só amores guardei ao meu charuto (1997) é, entre os estudados, seu romance mais atual. Nessa obra, Rubem Fonseca apresenta o escritor Gustavo Flávio que já fora sua personagem em Bufo & Spallanzani (1985), e também o criminalista Mandrake d’A grande arte (1983). Gustavo Flávio é, dessa vez, relacionado com outro crime e, talvez por seu “curriculum” (em Bufo & Spallanzani esteve relacionado com a morte de Delfina Delamare), seja o principal suspeito até mesmo para sua nova companheira. Mandrake é quem irá trabalhar no caso e tentar desvendar o crime. Assim como Mattos (Agosto, 1990), a condição existencial que marca a vida de Gustavo Flávio é o individualismo. Ele se sente isolado, porém quer sentir-se isolado, e por não gostar que ninguém mexa em suas coisas, faz com que acreditem estar escondendo algo. Uma outra forma de violência que está presente nas obras de Rubem Fonseca, é a violência do autor contra o leitor. Através da análise das relações entre violência e linguagem, podemos sentir a hostilidade no contato com o leitor. Esta hostilidade se traduz pela violência discursiva, tanto através de expedientes formais (estilo seco e entrecortado, frases curtas), como através dos recursos de conteúdo, nas situações-limite em que envolve as personagens. Supondo que a linguagem em geral tem escondido o que justamente importa revelar, Rubem Fonseca propõe o inverso: da “matéria bruta” concernente à realidade para a sua representação na narrativa, uma série de desmistificações se faz necessárias, e na base delas está, sobretudo, a desmistificação da linguagem. A linguagem violenta tem uma função definida frente ao seu leitor: a de presentificar a violência de modo a que ele não tenha mais condições de questioná-la. Entretanto, somos acostumados a abrandar, através de mecanismos vários (como o silêncio, por exemplo), o efeito do que tem que ser dito pelo modo de o dizer, ficamos surpresos diante de uma linguagem tão avessa a atenuações. Nome : Graciele Lins n º 15

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Pensamentos de Rubem Fonseca:

 
" Pois o belo muda, a inteligência muda, a medida muda. Mas o desejo é inalterável. "
 
" Quanto a mim , o que me mantém vivo é o risco iminente da paixão e seus coadjuvantes, amor, ódio, gozo e misericórdia."
 
" Adote um animal selvagem e mate um homem. "
 
" Leio os jornais para saber o que eles estão comendo, bebendo e fazendo. Quero viver muito para ter tempo de matar todos eles. "
 
" Um ladrão é considerado um pouco mais perigoso do que um artista. " - O caso Morel
 
" Numa separação, aquele que não ama é o que diz as coisas carinhosas. " 
 
" Ao se misturarem, as salivas adquirem um paladar inefável, comparável apenas ao néctar mitológico. "
 
" Tenho ginásio, sei ler, escrever e fazer raiz quadrada. Chuto macumba que quiser. "
 
" O pecado é mais saudável e alegre do que a virtude. Aqueles que trocam o vício pela beatice tornam-se velhos feios e desagradáveis. " - O Doente de Moliere
 
" Tinha muitas ideias na cabeça, e isso me atrapalhava. Os melhores conferencistas são aqueles de uma única ideia. Os melhores professores, os que sabem pouco." - O Caso Morel
 
" Deixo as mulheres bonitas para os homens sem criatividade. "
 
" A coerência é uma característica vegetal que eu felizmente não possuo. " - Mandrake - Grande Arte
 
" As coisas naturais têm que ser conhecidas antes de serem amadas. As coisas sobrenaturais só chegam a ser conhecidas por aqueles que as amam."
 
" O homem é um animal solitário, um animal infeliz, só a morte pode concertar a gente. " - Os Prisioneiros
 
" Escrever é tomar decisões constantemente. "
 
Camilla da Silva Costa, nº 5   
Betsy
Por Rubem Fonseca
 
 
Betsy esperou a volta do homem para morrer.

Antes da viagem ele notara que Betsy mostrava um apetite incomum. Depois surgiram outros sintomas, ingestão excessiva de água, incontinência urinária. O único problema de Betsy até então era a catarata numa das vistas. Ela não gostava de sair, mas antes da viagem entrara inesperadamente com ele no elevador e os dois passearam no calçadão da praia, algo que ela nunca fizera. No dia em que o homem chegou, Betsy teve o derrame e ficou sem comer. Vinte dias sem comer, deitada na cama com o homem. Os especialistas consultados disseram que não havia nada a fazer. Betsy só saia da cama para beber água.

O homem permaneceu com Betsy na cama durante toda a sua agonia, acariciando seu corpo, sentindo com tristeza a magreza de suas ancas. No último dia, Betsy, muito quieta, os olhos azuis abertos, fitou o homem com o mesmo olhar de sempre, que indicava o conforto e o prazer produzidos pela presença e pelos carinhos dele. Começou a tremer e ele a abraçou com mais força. Sentindo que os membros dela estavam frios, o homem arranjou para Betsy uma posição confortável na cama. Então ela estendeu o corpo, parecendo se espreguiçar, e virou a cabeça para trás, num gesto cheio de langor. Depois esticou o corpo ainda mais e suspirou, uma exalação forte. O homem pensou que Betsy havia morrido. Mas alguns segundos depois ela emitiu novo suspiro. Horrorizado com sua meticulosa atenção o homem contou, um a um, todos os suspiros de Betsy. Com o intervalo de alguns segundos ela exalou nove suspiros iguais, a língua para fora, pendendo do lado da boca. Logo ela passou a golpear a barriga com os dois pés juntos, como fazia ocasionalmente, apenas com mais violência. Em seguida, ficou imóvel. O homem passou a mão de leve no corpo de Betsy. Ela se espreguiçou e alongou os membros pela última vez. Estava morta. Agora, o homem sabia, ela estava morta.

A noite inteira o homem passou acordado ao lado de Betsy, afagando-a de leve, em silêncio, sem saber o que dizer. Eles haviam vivido juntos dezoito anos.

De manhã, ele a deixou na cama e foi até a cozinha e preparou um café puro. Foi tomar o café na sala. A casa nunca estivera tão vazia e triste.

Felizmente o homem não jogara fora a caixa de papelão do liqüidificador. Voltou para o quarto. Cuidadosamente, colocou o corpo de Betsy dentro da caixa. Com a caixa debaixo do braço caminhou para a porta. Antes de abri-la e sair, enxugou os olhos. Não queria que o vissem assim.

Rubem Fonseca: de seu livro "Histórias de amor" (contos), editado por Cia. das Letras - São Paulo, 1997, pág. 09, extraímos o texto acima.
 
Camilla da Silva Costa, n° 5

 

Cidade de Deus

O nome dele é João Romeiro, mas é conhecido como Zinho na Cidade de Deus, uma favela em Jacarepaguá, onde comanda o tráfico de drogas. Ela é Soraia Gonçalves, uma mulher dócil e calada. Soraia soube que Zinho era traficante dois meses depois de estarem morando juntos num condomínio de classe média alta da Barra da Tijuca. Você se importa?, Zinho perguntou, e ela respondeu que havia tido na vida dela um homem metido a direito que não passava de um canalha. No condomínio Zinho é conhecido como vendedor de uma firma de importação. Quando chega uma partida grande de droga na favela Zinho some durante alguns dias. Para justificar sua ausência Soraia diz, para as vizinhas que encontra no playground ou na piscina, que o marido está viajando pela firma. A polícia anda atrás dele, mas sabe apenas o seu apelido, e que ele é branco. Zinho nunca foi preso.
Hoje à noite Zinho chegou em casa depois de passar três dias distribuindo, pelos seus pontos, cocaína enviada pelo seu fornecedor em Puerto Suarez e maconha que veio de Pernambuco. Foram para a cama. Zinho era rápido e rude e depois de foder a mulher virava as costas para ela e dormia. Soraia era calada e sem iniciativa, mas Zinho queria ela assim, gostava de ser obedecido na cama como era obedecido na Cidade de Deus.

“Antes de você dormir posso te perguntar uma coisa?”

“Pergunta logo, estou cansado e quero dormir, amorzinho.”

"Você seria capaz de matar uma pessoa por mim?"

“Amorzinho, eu mato um cara porque ele me roubou cinco gramas, não vou matar um sujeito que você pediu? Diz quem é o cara. É aqui do condomínio?”

“Não”.

“De onde é?”

“Mora na Taquara”.

“O que foi que ele te fez?”

“Nada. Ele é um menino de sete anos. Você já matou um menino de sete anos?”

“Já mandei furar a bala as palmas das mãos de dois merdinhas que sumiram com uns papelotes, pra servir de exemplo, mas acho que eles tinham dez anos. Por que você quer matar um moleque de sete anos?”

“Para fazer a mãe dele sofrer. Ela me humilhou. Tirou o meu namorado, fez pouco de mim, dizia para todo mundo que eu era burra. Depois casou com ele. Ela é loura, tem olhos azuis e se acha o máximo.”

“Você quer se vingar porque ela tirou o seu namorado? Você ainda gosta desse puto, é isso?”

“Gosto só de você, Zinho, você é tudo para mim. Esse merda do Rodrigo não vale nada, só sinto desprezo por ele. Quero fazer a mulher sofrer porque ela me humilhou, me chamou de burra, ria na frente dos outros.”

“Posso matar esse puto.”

“Ela nem gosta dele. Quero fazer essa mulher sofrer muito. Morte de filho deixa a mãe desesperada.”

“Está bem. Você sabe onde o menino mora?”

“Sei.”

“Vou mandar pegar o moleque e levar para a Cidade de Deus.”

“Mas não faz o garoto padecer muito.”

“Se essa puta souber que o filho morreu sofrendo é melhor, não é? Me dá o endereço. Amanhã mando fazer o serviço, a Taquara é perto da minha base.”

De manhã bem cedo Zinho saiu de carro e foi para a Cidade de Deus. Ficou fora dois dias. Quando voltou, levou Soraia para a cama e ela docilmente obedeceu a todas as suas ordens, Antes de ele dormir, ela perguntou, “você fez aquilo que eu pedi?”

“Faço o que prometo, amorzinho. Mandei meu pessoal pegar o menino quando ele ia para o colégio e levar para a Cidade de Deus. De madrugada quebraram os braços e as pernas do moleque, estrangularam, cortaram ele todo e depois jogaram na porta da casa da mãe. Esquece essa merda, não quero mais ouvir falar nesse assunto", disse Zinho.
“Sim, eu já esqueci.”

Zinho virou as costas para Soraia e dormiu. Zinho tinha um sono pesado. Soraia ficou acordada ouvindo Zinho roncar. Depois levantou-se e pegou um retrato de Rodrigo que mantinha escondido num lugar que Zinho nunca descobriria. Sempre que Soraia olhava o retrato do antigo namorado, durante aqueles anos todos, seus olhos se enchiam de lágrimas. Mas nesse dia as lágrimas foram mais abundantes.

“Amor da minha vida”, ela disse, apertando o retrato de Rodrigo de encontro ao seu coração sobressaltado.


Texto extraído do livro "Histórias de Amor", Cia. das Letras - 1997 - São Paulo, pág. 11.

Camilla da Silva Costa, n° 5